Esse ano vou tentar participar do fórum entre pontos e vírgulas e o primeiro livro a ser discutido é Dom Quixote. Dito isto fui logo procurar
qual seria a melhor tradução do livro disponível no Brasil E cujo preço
encaixasse no bolso. Após uma pesquisa fiquei em dúvida entre a edição de bolso
da editora 34 traduzida pelo Sérgio Molina ou a edição da Penguin-Companhia traduzida pelo Ernani Ssó.
Caso, se interessem por mais tradutores eu recomendo esseartigo que discorre sobre todas as traduções (exceto a do Ernani Ssó, que não havia
sido lançada na época do artigo), utilizei também o vídeo da Tatiana Feltrin
sobre Dom Quixote (ela começa a falar das traduções a partir do minuto 14:45).
~ e começa aqui o meu papo profundo de leiga sobre tradução
~
Entre as edições com o preço mais acessível mencionadas
acima a tradução do Sérgio Molina me pareceu mais confiável. O 1º volume ficou
em 3º lugar no premio Jabuti na categoria de melhor tradução e me parece mais
fiel ao original, ela ainda possui mais notas de rodapé, então se isso é algo que te agrada leve em consideração que o Ssó decidiu reduzir as notas ao máximo. A tradução do Ssó por outro lado utiliza um vocabulário mais
atual, moderniza o texto para facilitar a leitura. Nesse caso é questão de
opinião, há quem diga que essa técnica é válida e há quem discorde dessa
“facilitada” concedida ao leitor (assistam o vídeo da Tati).
Enfim, não encontrei amostras do primeiro capitulo do livro
dessas editoras (a penguin-companhia disponibiliza uma amostra, mas ela contém
apenas o prólogo) e sei que nem todo mundo tem uma livraria perto para comparar
as traduções, por isso transcrevi para vocês as primeiras paginas da parte II
do livro (infelizmente, na livraria em que eu fui, a parte I da editora 34
estava em falta).
EDITORA 34 – TRADUÇÃO:
SERGIO MOLINA (ED. DE BOLSO)
Capitulo 1
DO QUE O PADRE E O
BARBEIRO TRATARAM COM D. QUIXOTE ACERCA DE SUA DOENÇA
Conta Cide
Hamete Benengeli, na segunda parte desta historia e terceira saída de D.
Quixote, que o padre e o barbeiro passaram quase um mês sem o ver, para não
renovar nem lhe trazer à memoria as coisas passadas. Mas nem por isso deixaram
de visitar sua sobrinha e sua ama, recomendando-lhes que tratassem de o
regalar, dando-lhe de comer coisas confortativas e apropriadas para o coração e
o cérebro, donde (segundo bom discurso) provinha toda sua má ventura. As quais
disseram que assim faziam e fariam com a melhor vontade e cuidado possível,
pois viam que seu senhor ia dando mostras de estar cada vez mais em seu inteiro
juízo; do qual receberam os dois grande contentamento, por lhes parecer que
haviam acertado em trazê-lo encantado no carro de bois (como se contou na
primeira parte desta tão grande quanto pontual historia, no seu ultimo trecho),
e assim determinaram de o visitar e fazer experiência de sua melhoria, bem que
a tivessem por quase impossível, acordando não tocar em nenhum ponto da andante
cavalaria, para não se arriscarem a descoser os da
ferida, que tão tenros ainda estavam.
Visitaram-no,
enfim, e o acharam sentado na cama, vestindo uma almilja de baeta verde, com um
gorro vermelho de malha, tão magro e amumiado que parecia um peixe seco. Foram
por ele muito bem recebidos, perguntaram-lhe por sua saúde, e ele deu conta de
si e dela com muito juízo e elegantes palavras. E no discurso da conversação vieram
a tratar daquilo que chamam “razão de Estado” e modos de governo, emendando
este abuso e condenando aquele, reformando um costume e banindo outro, fazendo-se
cada um dos três um novo legislador, um Licurgo moderno ou um Sólon reluzente,[1]
e de tal maneira renovaram a republica, que pareceu como se a tivessem metido
numa forja e tirado outra em seu lugar. E falou D. Quixote com tanta discrição
sobre todas as matérias tratadas, que os dois examinadores creram
indubitavelmente que ele estava de todo bom e em seu inteiro juízo.
Assistiram
à conversação a ama e a sobrinha, e não se fartavam de dar graças a Deus por
verem o seu senhor com tao bom entendimento. Mas o padre, mudando seu primeiro
proposito, que era de não tocar em coisas de cavalarias, quis experimentas de
todo se a sanidade de D. Quixote era falsa ou verdadeira e, assim, de lance em
lance, foi contando algumas novas vindas da corte, e entre outras disse que se
tinha por certo que o turco avançava com uma poderosa armada,[2]
e que não se sabia seu desígnio nem onde haveria de descarregar tamanha
tormenta, e por tal temor, que quase todos os anos no faz tocar alarma, às
armas estava posta toda a cristandade, e Sua Magestade havia mandado prover as
costas de Nápoles e da Sicília e a ilha de Malta. A isto respondeu D. Quixote:
─ Sua Majestade fez como
prudentíssimo guerreiro em aparelhas seus estados com tempo, por que o inimigo não
o apanhe desprevenido. Porém, se tomasse o meu conselho, eu o aconselharia a
usar de uma precaução na qual, ora agora, Sua Majestade deve estar muito longe
de pensar.
Ouvindo isto, disse o padre entre
si: “que deus te proteja e valha, pobre D. Quixote, pois me parece que te
despenhas do alto da tua loucura até o profundo abismo da tua simplicidade!”.
Mas o barbeiro (que já havia atinado
no mesmo pensamento que o padre) perguntou a D. Quixote qual era a advertência da
prevenção que dizia ser bem que se fizesse. Talvez fosse tal que entrasse na
lista das muitas advertências impertinentes que se costumam dar aos príncipes.
─ A minha, senhor rapa-queixos ─
disse D. Quixote ─, não será impertinente, senão bem pertencente.
─ Não o digo por isso ─ replicou o barbeiro ─, mas porque a experiência
tem mostrado que todos ou os mais arbitrários[3] que
se oferecem a Sua Majestade, ou são impossíveis, ou disparatados, ou em dano do
rei ou do reino.
─ Pois o meu ─ respondeu D. Quixote ─ nem é impossível nem
disparatado, senão o mais fácil, o mais justo e o mais maneiro e expedito que
pode caber em pensamento de arbitrista algum.
─ Já tarda em dizê-lo vossa mercê, senhor D. Quixote ─ disse
o padre.
─ Não quisera ─ disse D. Quixote ─ dizê-lo eu aqui agora e
que amanhecesse amanhã nos ouvidos dos senhores conselheiros, e um outro
levasse o agradecimento e o prêmio do meu trabalho.
─ Por mim ─ disse o barbeiro ─, dou minha palavra, aqui e
perante Deus, de não dizer o que vossa mercê disser, nem a rei nem roque, nem a
homem terrenal, juramento que aprendi do romance do padre[4]
que no introito da missa avisou ao rei do ladrão que lhe roubara as cem dobras
e sua mula estradeira.
─ Não sei de historias ─ disse D. Quixote ─, mas sei que esse
juramento é bom, em fé de que sei que o senhor barbeiro é homem de bem.
─ Ainda que não fosse ─ disse o padre ─, eu o afianço e
garanto que neste caso não falará mais que um mudo, ou pagará a pena da lei.
─ E a vossa mercê quem fia, senhor padre? ─ disse D.
Quixote.
─ A minha profissão ─ respondeu o padre ─, que é de guardar
segredo.
─ Corpo de tal![5] ─
disse então D. Quixote ─ Que mais houvera de fazer Sua Majestade senão mandar
por publico pregão que num dia concertado se reunissem na corte todos os
cavaleiros andantes que vagam pela Espanha? Pois, ainda que só meia dúzia se
apresentasse, poderia vir entre eles aquele que sozinho bastaria para destruir
todo o poderio do Turco. Estejam vossas mercês atentos e me acompanhem. Porventura
é novidade um só cavaleiro andante desbaratar um exército de duzentos mil
homnes, como se todos juntos tivessem um só pescoço ou fossem deitos de
alfenin? Pois que me digam quantas historias estão cheias dessas maravilhas. Havia
de viver hoje, em má hor para mim, que não quero dizer para outro, o famoso D.
Belianis ou algum dos da inumerável linhagem de Amadis de Gaula! Pois se algum
deles hoje vivesse e com o Turco se batesse, à fé que não quisera estar no
lugar dele. Mas Deus olhará por seu povo e lhe desparará algum que, se não tão
bravo como os passados andantes cavaleiros, ao menos não lhes será inferior no
ânimo. E Deus me entende, e não digo mais.
─ Ai! ─ disse a sobrinha nesse ponto. ─ Que me matem se meu
senhor não quer voltar a ser cavaleiro andante!
Ao que disse D. Quixote:
─ Cavaleiro andante hei de morrer, e venha ou vá o Turco
quando bem quiser e quão poderosamente puder, que eu torno a dizer que Deus me
entende.
[1] Sólon (640-558 a.C.) e
Licurgo (séc. IX a.C.): dois grande políticos da antiguidade clássica,
responsáveis por importantes reformas institucionais em Atenas e Esparta,
respectivamente, e frequentemente citados pelos humanistas como legisladores
exemplares.
[2] Em face do fortalecimento
das posições turcas no norte da África, a possibilidade de um ataque maciço das
costas espanholas era tema recorrente de boatos e discussões, a tal ponto que
se tornou sinônimo de conversa ociosa.
[3] “Arbítrios”: propostas, em
geral fantasiosas, dirigidas aos soberanos para aa solução tanto de grandes
problemas públicos como de pequenos assuntos domésticos. As caricatura dos
árbitros e seus disparates chegou a constituir um gênero burlesco, visitado
pelo próprio Cervantes na “Novela de Cipión e Berganza” (ou ‘Colóquio dos
cachorros”).
[4] Embora os versos originais
tenham se perdido, seu argumento foi conservado no conto popular do padre que,
ao reconhecer entre os fieis o ladrão que lhe roubava o dinheiro e a mula e o
fizera jurar não denunciá-lo a pessoa alguma, dirigiu a delação a Deus diante
dos deus fiéis, inserindo-a no introito da missa. A expressão “ni a rey ni a
roque”, provem do jogo de xadrez e significa “a absolutamente ninguém.”
[5] A interjeição eufemística,
em resposta à alegação do segredo sacramental, ganha aqui certa jocosidade,
pois ecoa a fórmula que o sacerdote pronuncia ao dar a hóstia.
EDITORA PENGUIN-COMPANHIA
– TRADUÇAO:
I
DO QUE O PADRE E O
BARBEIRO TRATARAM COM DOM QUIXOTE SOBRE A DOENÇA DELE
Conta Cide
Hamete Benengeli, na segunda parte desta historia e terceira saída de dom
Quixote, que o padre e o barbeiro estiveram quase um mês sem vê-lo, para não
reavivar e lhe trazer à memoria as coisas passadas. Mas nem por isso deixaram
de visitar sua sobrinha e sua criada, recomendando a elas que cuidassem bem
dele, dando-lhe de comer coisas revigorantes e apropriadas para o coração e o
cérebro, de onde era logico supor que procedia todo o seu infortúnio. Elas
disseram que assim o faziam e continuariam a fazer com prazer e todo o cuidado
possível, porque viam que seu senhor aos poucos ia dando mostras de estar em
seu juízo perfeito. Os dois se alegraram
muito com isso, por pensarem que tinha acertado em tê-lo trazido encantado no
carro de bois, como se contou na primeira parte desta tão grande quanto exata
historia, no último capítulo. Então resolveram visita-lo e comprovar sua
melhora, embora a considerassem quase impossível, e combinaram não tocar em
nenhum ponto que dissesse respeito à cavalaria andante, para não haver perigo
de desatar os pontos ainda recentes da ferida dele.
Por fim
foram visita-lo e o encontraram sentado na cama, vestido com uma camisola justa
de flanela verse e uma touca de malha vermelha de Toledo; e estava tão seco e
mirrado que parecia uma múmia. Foram muito bem recebidos por ele e perguntaram
por sua saúde, e ele falou de si mesmo e dela com muito juízo e com palavras
muito elegantes. E, durante a conversa, acabaram por tratar disso que chamam
“razão de estado” e modos de governo, consertando este abuso e condenando
aquele, reforçando um costume e banindo outro, cada um dos três se fazendo um
novo legislador, um Licurgo moderno ou um Sólon flamante, e de tal maneiraa
renovaram a republica que pareceu que a tinha posto numa forja e tirado outra
muito diferente. E dom Quixote falou com tanta sensatez em todos os assuntos
abordados que os dois examinadores acreditaram indubitavelmente que estava bom de
todo e em seu juízo perfeito.
Achavam-se
presentes à conversa a sobrinha e a criada, que não se fartavam de dar graças a
deus por ver seu senhor com tanto bom senso. Mas o padre, deixando de lado o
proposito inicial, que era não tocar em coisas de cavalaria, quis comprovar sem
a menor duvida se a sanidade de dom Quixote era falsa ou verdadeira e então,
pulando de um assunto para o outro, contou algumas noticias que tinham chegado
da corte, e, entre elas, disse que se tinha certeza de que o turco baixava com
uma Armanda poderosa e que não se conhecia seu designio nem onde ia descarregar
tao grande tormenta, e com este temor, que quase todo ano nos deixa alertas,
estava pegando em armas quase toda a cristandade, e Sua Magestade havia mandado
guarnecer as costas de Nápoles e da Sicília e a ilha de Malta. A isto, dom
Quixote respondeu:
─ Sua Majestade agiu como prudentíssimo
guerreiro ao guarnecer seus estados com tempo, para que o inimigo não o ache
desprevenido; mas, se pedissem meu conselho, eu diria que se usasse uma medida
que Sua Majestade, nesse exato momento, está longe de pensar.
Mal ouviu isso, o padre disse a si
mesmo: “Que Deus te ajude, pobre dom Quixote, pois me parece que despencas do
alto da tua loucura até o abismo profundo de tua estupidez!”.
Mas o barbeiro, que já tinha chegado à mesma conclusão do
padre, preguntou a dom Quixote que medida ele achava que devia tomar; poderia
ser o tipo talvez das que se põe na lista dos muitos conselhos impertinentes
que costumam se dar aos príncipes.
─ O meu, senhor tosquiador ─ disse dom Quixote ─, não será
impertinente, mas pertinente.
─ Não falo por isso ─ replicou o barbeiro ─, mas porque a experiência
tem mostrado que todos ou a maioria dos conselhos que se dão a Sua Majestade ou
são impossíveis ou disparatados ou prejudiciais ao rei ou ao reino.
Ora, o meu ─ respondeu dom Quixote ─ nem é impossível nem
disparatado, mas o mais simples, o mais justo, o mais prático e rápido que pode
caber no pensamento de algum conselheiro.
─ Vossa mercê está demorando a dizê-lo, senhor dom Quixote ─ disse o padre.
─ Não gostaria de revelar o meu agora ─ disse dom Quixote ─
e vê-lo amanhã de manhã nos ouvidos dos senhores ministros, com outro recebendo
os agradecimentos e o prêmio de meu trabalho.
─ Por mim ─ disse o barbeiro ─, dou minha palavra, aqui e
diante de Deus, de não contar o que vossa mercê disser nem a rei ou rainha,
torre, cavalo, bispo ou peão, ou homem mortal, juramento que aprendi na
historia do padre que no introito da missa avisou ao rei do ladrão que tinha
lhe roubado cem dobrões e a mula de viagem.[1]
─ Nada sei dessa historia ─ disse dom Quixote ─, mas sei que
esse juramento é bom, pois tenho certeza de que o senhor barbeiro é homem de
bem.
─ E mesmo que não fosse ─ disse o padre ─, sou seu fiador e
garanto que neste caso ele não falará mais que um mudo, sob pena de pagar o que
for julgado e sentenciado.
─ E vossa mercê, senhor padre? Quem é seu fiador? ─ disse
dom Quixote.
─ Minha profissão ─ respondeu o padre ─, que é guardar
segredo.
─ Pelo corpo de Cristo! ─ exclamou dom Quixote nessa altura.
─ O que mais seria preciso além de Sua Majestade ordenar, em pregão publico,
que se reúnam na corte num dia marcado todos os cavaleiros andantes que
vagueiam pela Espanha? Mesmo que se apresentasse apenas meia dúzia, poderia vir
entre eles um que sozinho bastasse para destruir todo o poder do Turco.
Ouçam-me vossas mercês com atenção e me acompanhem: por acaso é coisa nova um
só cavaleiro andante desbaratar um exercito de duzentos mil homens, como se
todos juntos tivessem uma só garganta ou fosse feitos de açúcar? Se não,
digam-me quantas historias estão repletas dessas maravilhas. Havia de viver
hoje, em má hora para mim, pois não quero dizer para outro, o famoso dom
Belianis ou algum dos da inumerável linhagem de Amadis de Gaula! Pois se algum
desses vivesse hoje e se batesse com o Turco, com certeza eu não lhe arrendaria
os despojos. Mas deus olhará por seu povo e encontrará algum que, se não for
tao bravo como os antigos cavaleiros andantes, pelo menos não será inferior em
coragem. E Deus sabe de quem falo, e mais não digo.
─ Ai! ─ disse a sobrinha nesse ponto. ─ Que me matem se meu
senhor não quer ser cavaleiro andante de novo!
Ao que dom Quixote disse:
─Cavaleiro andante hei de morrer, baixe ou suba o Turco
quando quiser e com toda força que puder, pois outra vez Deus sabe do que falo.
[1] Infelizmente as notas nessa edição ficam no fim do livro e eu não me atentei a esse detalhe quando estava na livraria.
Enfim, espero ter ajudado de alguma forma. Boa Leitura!
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