domingo, 7 de fevereiro de 2016

Traduções de Dom Quixote

Esse ano vou tentar participar do fórum entre pontos e vírgulas e o primeiro livro a ser discutido é Dom Quixote. Dito isto fui logo procurar qual seria a melhor tradução do livro disponível no Brasil E cujo preço encaixasse no bolso. Após uma pesquisa fiquei em dúvida entre a edição de bolso da editora 34 traduzida pelo Sérgio Molina ou a edição da Penguin-Companhia traduzida pelo Ernani Ssó.

Caso, se interessem por mais tradutores eu recomendo esseartigo que discorre sobre todas as traduções (exceto a do Ernani Ssó, que não havia sido lançada na época do artigo), utilizei também o vídeo da Tatiana Feltrin sobre Dom Quixote (ela começa a falar das traduções a partir do minuto 14:45).

~ e começa aqui o meu papo profundo de leiga sobre tradução ~

Entre as edições com o preço mais acessível mencionadas acima a tradução do Sérgio Molina me pareceu mais confiável. O 1º volume ficou em 3º lugar no premio Jabuti na categoria de melhor tradução e me parece mais fiel ao original, ela ainda possui mais notas de rodapé, então se isso é algo que te agrada leve em consideração que o Ssó decidiu reduzir as notas ao máximo. A tradução do Ssó por outro lado utiliza um vocabulário mais atual, moderniza o texto para facilitar a leitura. Nesse caso é questão de opinião, há quem diga que essa técnica é válida e há quem discorde dessa “facilitada” concedida ao leitor (assistam o vídeo da Tati).


Enfim, não encontrei amostras do primeiro capitulo do livro dessas editoras (a penguin-companhia disponibiliza uma amostra, mas ela contém apenas o prólogo) e sei que nem todo mundo tem uma livraria perto para comparar as traduções, por isso transcrevi para vocês as primeiras paginas da parte II do livro (infelizmente, na livraria em que eu fui, a parte I da editora 34 estava em falta).


EDITORA 34 – TRADUÇÃO: SERGIO MOLINA (ED. DE BOLSO)

Capitulo 1

DO QUE O PADRE E O BARBEIRO TRATARAM COM D. QUIXOTE ACERCA DE SUA DOENÇA

            Conta Cide Hamete Benengeli, na segunda parte desta historia e terceira saída de D. Quixote, que o padre e o barbeiro passaram quase um mês sem o ver, para não renovar nem lhe trazer à memoria as coisas passadas. Mas nem por isso deixaram de visitar sua sobrinha e sua ama, recomendando-lhes que tratassem de o regalar, dando-lhe de comer coisas confortativas e apropriadas para o coração e o cérebro, donde (segundo bom discurso) provinha toda sua má ventura. As quais disseram que assim faziam e fariam com a melhor vontade e cuidado possível, pois viam que seu senhor ia dando mostras de estar cada vez mais em seu inteiro juízo; do qual receberam os dois grande contentamento, por lhes parecer que haviam acertado em trazê-lo encantado no carro de bois (como se contou na primeira parte desta tão grande quanto pontual historia, no seu ultimo trecho), e assim determinaram de o visitar e fazer experiência de sua melhoria, bem que a tivessem por quase impossível, acordando não tocar em nenhum ponto da andante cavalaria, para não se arriscarem a descoser os da ferida, que tão tenros ainda estavam.
            Visitaram-no, enfim, e o acharam sentado na cama, vestindo uma almilja de baeta verde, com um gorro vermelho de malha, tão magro e amumiado que parecia um peixe seco. Foram por ele muito bem recebidos, perguntaram-lhe por sua saúde, e ele deu conta de si e dela com muito juízo e elegantes palavras. E no discurso da conversação vieram a tratar daquilo que chamam “razão de Estado” e modos de governo, emendando este abuso e condenando aquele, reformando um costume e banindo outro, fazendo-se cada um dos três um novo legislador, um Licurgo moderno ou um Sólon reluzente,[1] e de tal maneira renovaram a republica, que pareceu como se a tivessem metido numa forja e tirado outra em seu lugar. E falou D. Quixote com tanta discrição sobre todas as matérias tratadas, que os dois examinadores creram indubitavelmente que ele estava de todo bom e em seu inteiro juízo.
            Assistiram à conversação a ama e a sobrinha, e não se fartavam de dar graças a Deus por verem o seu senhor com tao bom entendimento. Mas o padre, mudando seu primeiro proposito, que era de não tocar em coisas de cavalarias, quis experimentas de todo se a sanidade de D. Quixote era falsa ou verdadeira e, assim, de lance em lance, foi contando algumas novas vindas da corte, e entre outras disse que se tinha por certo que o turco avançava com uma poderosa armada,[2] e que não se sabia seu desígnio nem onde haveria de descarregar tamanha tormenta, e por tal temor, que quase todos os anos no faz tocar alarma, às armas estava posta toda a cristandade, e Sua Magestade havia mandado prover as costas de Nápoles e da Sicília e a ilha de Malta. A isto respondeu D. Quixote:
            ─ Sua Majestade fez como prudentíssimo guerreiro em aparelhas seus estados com tempo, por que o inimigo não o apanhe desprevenido. Porém, se tomasse o meu conselho, eu o aconselharia a usar de uma precaução na qual, ora agora, Sua Majestade deve estar muito longe de pensar.
            Ouvindo isto, disse o padre entre si: “que deus te proteja e valha, pobre D. Quixote, pois me parece que te despenhas do alto da tua loucura até o profundo abismo da tua simplicidade!”.
            Mas o barbeiro (que já havia atinado no mesmo pensamento que o padre) perguntou a D. Quixote qual era a advertência da prevenção que dizia ser bem que se fizesse. Talvez fosse tal que entrasse na lista das muitas advertências impertinentes que se costumam dar aos príncipes.
            ─ A minha, senhor rapa-queixos ─ disse D. Quixote ─, não será impertinente, senão bem pertencente.
─ Não o digo por isso ─ replicou o barbeiro ─, mas porque a experiência tem mostrado que todos ou os mais arbitrários[3] que se oferecem a Sua Majestade, ou são impossíveis, ou disparatados, ou em dano do rei ou do reino.
─ Pois o meu ─ respondeu D. Quixote ─ nem é impossível nem disparatado, senão o mais fácil, o mais justo e o mais maneiro e expedito que pode caber em pensamento de arbitrista algum.
─ Já tarda em dizê-lo vossa mercê, senhor D. Quixote ─ disse o padre.
─ Não quisera ─ disse D. Quixote ─ dizê-lo eu aqui agora e que amanhecesse amanhã nos ouvidos dos senhores conselheiros, e um outro levasse o agradecimento e o prêmio do meu trabalho.
─ Por mim ─ disse o barbeiro ─, dou minha palavra, aqui e perante Deus, de não dizer o que vossa mercê disser, nem a rei nem roque, nem a homem terrenal, juramento que aprendi do romance do padre[4] que no introito da missa avisou ao rei do ladrão que lhe roubara as cem dobras e sua mula estradeira.
─ Não sei de historias ─ disse D. Quixote ─, mas sei que esse juramento é bom, em fé de que sei que o senhor barbeiro é homem de bem.
─ Ainda que não fosse ─ disse o padre ─, eu o afianço e garanto que neste caso não falará mais que um mudo, ou pagará a pena da lei.
─ E a vossa mercê quem fia, senhor padre? ─ disse D. Quixote.
─ A minha profissão ─ respondeu o padre ─, que é de guardar segredo.
─ Corpo de tal![5] ─ disse então D. Quixote ─ Que mais houvera de fazer Sua Majestade senão mandar por publico pregão que num dia concertado se reunissem na corte todos os cavaleiros andantes que vagam pela Espanha? Pois, ainda que só meia dúzia se apresentasse, poderia vir entre eles aquele que sozinho bastaria para destruir todo o poderio do Turco. Estejam vossas mercês atentos e me acompanhem. Porventura é novidade um só cavaleiro andante desbaratar um exército de duzentos mil homnes, como se todos juntos tivessem um só pescoço ou fossem deitos de alfenin? Pois que me digam quantas historias estão cheias dessas maravilhas. Havia de viver hoje, em má hor para mim, que não quero dizer para outro, o famoso D. Belianis ou algum dos da inumerável linhagem de Amadis de Gaula! Pois se algum deles hoje vivesse e com o Turco se batesse, à fé que não quisera estar no lugar dele. Mas Deus olhará por seu povo e lhe desparará algum que, se não tão bravo como os passados andantes cavaleiros, ao menos não lhes será inferior no ânimo. E Deus me entende, e não digo mais.
─ Ai! ─ disse a sobrinha nesse ponto. ─ Que me matem se meu senhor não quer voltar a ser cavaleiro andante!
Ao que disse D. Quixote:
─ Cavaleiro andante hei de morrer, e venha ou vá o Turco quando bem quiser e quão poderosamente puder, que eu torno a dizer que Deus me entende.




[1] Sólon (640-558 a.C.) e Licurgo (séc. IX a.C.): dois grande políticos da antiguidade clássica, responsáveis por importantes reformas institucionais em Atenas e Esparta, respectivamente, e frequentemente citados pelos humanistas como legisladores exemplares.
[2] Em face do fortalecimento das posições turcas no norte da África, a possibilidade de um ataque maciço das costas espanholas era tema recorrente de boatos e discussões, a tal ponto que se tornou sinônimo de conversa ociosa.
[3] “Arbítrios”: propostas, em geral fantasiosas, dirigidas aos soberanos para aa solução tanto de grandes problemas públicos como de pequenos assuntos domésticos. As caricatura dos árbitros e seus disparates chegou a constituir um gênero burlesco, visitado pelo próprio Cervantes na “Novela de Cipión e Berganza” (ou ‘Colóquio dos cachorros”).
[4] Embora os versos originais tenham se perdido, seu argumento foi conservado no conto popular do padre que, ao reconhecer entre os fieis o ladrão que lhe roubava o dinheiro e a mula e o fizera jurar não denunciá-lo a pessoa alguma, dirigiu a delação a Deus diante dos deus fiéis, inserindo-a no introito da missa. A expressão “ni a rey ni a roque”, provem do jogo de xadrez e significa “a absolutamente ninguém.”
[5] A interjeição eufemística, em resposta à alegação do segredo sacramental, ganha aqui certa jocosidade, pois ecoa a fórmula que o sacerdote pronuncia ao dar a hóstia. 


EDITORA PENGUIN-COMPANHIA – TRADUÇAO:

I

DO QUE O PADRE E O BARBEIRO TRATARAM COM DOM QUIXOTE SOBRE A DOENÇA DELE

            Conta Cide Hamete Benengeli, na segunda parte desta historia e terceira saída de dom Quixote, que o padre e o barbeiro estiveram quase um mês sem vê-lo, para não reavivar e lhe trazer à memoria as coisas passadas. Mas nem por isso deixaram de visitar sua sobrinha e sua criada, recomendando a elas que cuidassem bem dele, dando-lhe de comer coisas revigorantes e apropriadas para o coração e o cérebro, de onde era logico supor que procedia todo o seu infortúnio. Elas disseram que assim o faziam e continuariam a fazer com prazer e todo o cuidado possível, porque viam que seu senhor aos poucos ia dando mostras de estar em seu juízo perfeito.  Os dois se alegraram muito com isso, por pensarem que tinha acertado em tê-lo trazido encantado no carro de bois, como se contou na primeira parte desta tão grande quanto exata historia, no último capítulo. Então resolveram visita-lo e comprovar sua melhora, embora a considerassem quase impossível, e combinaram não tocar em nenhum ponto que dissesse respeito à cavalaria andante, para não haver perigo de desatar os pontos ainda recentes da ferida dele.
            Por fim foram visita-lo e o encontraram sentado na cama, vestido com uma camisola justa de flanela verse e uma touca de malha vermelha de Toledo; e estava tão seco e mirrado que parecia uma múmia. Foram muito bem recebidos por ele e perguntaram por sua saúde, e ele falou de si mesmo e dela com muito juízo e com palavras muito elegantes. E, durante a conversa, acabaram por tratar disso que chamam “razão de estado” e modos de governo, consertando este abuso e condenando aquele, reforçando um costume e banindo outro, cada um dos três se fazendo um novo legislador, um Licurgo moderno ou um Sólon flamante, e de tal maneiraa renovaram a republica que pareceu que a tinha posto numa forja e tirado outra muito diferente. E dom Quixote falou com tanta sensatez em todos os assuntos abordados que os dois examinadores acreditaram indubitavelmente que estava bom de todo e em seu juízo perfeito.
            Achavam-se presentes à conversa a sobrinha e a criada, que não se fartavam de dar graças a deus por ver seu senhor com tanto bom senso. Mas o padre, deixando de lado o proposito inicial, que era não tocar em coisas de cavalaria, quis comprovar sem a menor duvida se a sanidade de dom Quixote era falsa ou verdadeira e então, pulando de um assunto para o outro, contou algumas noticias que tinham chegado da corte, e, entre elas, disse que se tinha certeza de que o turco baixava com uma Armanda poderosa e que não se conhecia seu designio nem onde ia descarregar tao grande tormenta, e com este temor, que quase todo ano nos deixa alertas, estava pegando em armas quase toda a cristandade, e Sua Magestade havia mandado guarnecer as costas de Nápoles e da Sicília e a ilha de Malta. A isto, dom Quixote respondeu:
            ─ Sua Majestade agiu como prudentíssimo guerreiro ao guarnecer seus estados com tempo, para que o inimigo não o ache desprevenido; mas, se pedissem meu conselho, eu diria que se usasse uma medida que Sua Majestade, nesse exato momento, está longe de pensar.
            Mal ouviu isso, o padre disse a si mesmo: “Que Deus te ajude, pobre dom Quixote, pois me parece que despencas do alto da tua loucura até o abismo profundo de tua estupidez!”.
Mas o barbeiro, que já tinha chegado à mesma conclusão do padre, preguntou a dom Quixote que medida ele achava que devia tomar; poderia ser o tipo talvez das que se põe na lista dos muitos conselhos impertinentes que costumam se dar aos príncipes.
─ O meu, senhor tosquiador ─ disse dom Quixote ─, não será impertinente, mas pertinente.
─ Não falo por isso ─ replicou o barbeiro ─, mas porque a experiência tem mostrado que todos ou a maioria dos conselhos que se dão a Sua Majestade ou são impossíveis ou disparatados ou prejudiciais ao rei ou ao reino.
Ora, o meu ─ respondeu dom Quixote ─ nem é impossível nem disparatado, mas o mais simples, o mais justo, o mais prático e rápido que pode caber no pensamento de algum conselheiro.
─ Vossa mercê está demorando a dizê-lo, senhor dom Quixote  ─ disse o padre.
─ Não gostaria de revelar o meu agora ─ disse dom Quixote ─ e vê-lo amanhã de manhã nos ouvidos dos senhores ministros, com outro recebendo os agradecimentos e o prêmio de meu trabalho.
─ Por mim ─ disse o barbeiro ─, dou minha palavra, aqui e diante de Deus, de não contar o que vossa mercê disser nem a rei ou rainha, torre, cavalo, bispo ou peão, ou homem mortal, juramento que aprendi na historia do padre que no introito da missa avisou ao rei do ladrão que tinha lhe roubado cem dobrões e a mula de viagem.[1]
─ Nada sei dessa historia ─ disse dom Quixote ─, mas sei que esse juramento é bom, pois tenho certeza de que o senhor barbeiro é homem de bem.
─ E mesmo que não fosse ─ disse o padre ─, sou seu fiador e garanto que neste caso ele não falará mais que um mudo, sob pena de pagar o que for julgado e sentenciado.
─ E vossa mercê, senhor padre? Quem é seu fiador? ─ disse dom Quixote.
─ Minha profissão ─ respondeu o padre ─, que é guardar segredo.
─ Pelo corpo de Cristo! ─ exclamou dom Quixote nessa altura. ─ O que mais seria preciso além de Sua Majestade ordenar, em pregão publico, que se reúnam na corte num dia marcado todos os cavaleiros andantes que vagueiam pela Espanha? Mesmo que se apresentasse apenas meia dúzia, poderia vir entre eles um que sozinho bastasse para destruir todo o poder do Turco. Ouçam-me vossas mercês com atenção e me acompanhem: por acaso é coisa nova um só cavaleiro andante desbaratar um exercito de duzentos mil homens, como se todos juntos tivessem uma só garganta ou fosse feitos de açúcar? Se não, digam-me quantas historias estão repletas dessas maravilhas. Havia de viver hoje, em má hora para mim, pois não quero dizer para outro, o famoso dom Belianis ou algum dos da inumerável linhagem de Amadis de Gaula! Pois se algum desses vivesse hoje e se batesse com o Turco, com certeza eu não lhe arrendaria os despojos. Mas deus olhará por seu povo e encontrará algum que, se não for tao bravo como os antigos cavaleiros andantes, pelo menos não será inferior em coragem. E Deus sabe de quem falo, e mais não digo.
─ Ai! ─ disse a sobrinha nesse ponto. ─ Que me matem se meu senhor não quer ser cavaleiro andante de novo!
Ao que dom Quixote disse:
─Cavaleiro andante hei de morrer, baixe ou suba o Turco quando quiser e com toda força que puder, pois outra vez Deus sabe do que falo. 


[1] Infelizmente as notas nessa edição ficam no fim do livro e eu não me atentei a esse detalhe quando estava na livraria. 


Enfim, espero ter ajudado de alguma forma. Boa Leitura! 


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